segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A (dis) solução niilista de "A Concepção"


(ou AINDA ENTRE SUPERFÍCIE E SUBTERRÂNEO)

As lutas que o indivíduo trava diariamente com as existências exteriores a ele são muitas e as mais diversas. São ainda incansáveis e, ao que parece, sem solução definitiva. A busca de libertação frente a quaisquer ordem de força coercitiva, (da sociedade, da cultura exterior, da técnica da vida, da autoridade da consciência, da razão ou da história...) parece ser o mote do “movimento concepcionista”, aquela espécie de evento, com duração de 3 meses, pelos quais passaram os personagens do filme de José Eduardo Belmonte (A Concepção, Brasil, 2005).

Ênfase em tais nomes, que evocam antes idéias: movimento e concepção.

Aqui, podemos aliar então dois elementos antagônicos (um dos muitos outros pares que A Concepção nos trará): o da agregação coletiva em torno do “movimento concepcionista” e o mote clamado por “X”, suposto líder do grupo - somente o indivíduo é capaz de resolver os seus conflitos. O tal grupo, formado subitamente em torno deste anti-guru que é X, reúne jovens adultos da classe média e média alta de Brasília, a cidade que “se tivesse um livro de História, teria 10 páginas”. A princípio, essa primeira caracterização nos permite deduzir valores e trajetórias comuns, indivíduos assim possivelmente nivelados e rotulados pelos seus “mapas” identitários “legitimamente” criados nas sociedades modernas. De fato, é inegável que há tantos traços comuns entre aquelas figuras que comprarão a idéia da “morte ao ego” e invadirão o apartamento de Alex, tornando-o o reduto das práticas concepcionistas (em resumo, freqüentes uso de drogas e orgias, que transmitem a idéia de que a apatia e neurastenia frente à vida surgem tanto daquelas impressões inofensivas e efêmeras da vida cotidiana quanto dos excessos de estímulo e excitação buscados incessantemente para sair daquela*). Talvez, aí esteja o maior traço comum entre personagens díspares, o fato de terem tantos "mapas", os quais, porém, são externos a eles e não oferecem amparo. Daí, o que leva o espectador por muitas vezes, e até o fim, perceber tais indivíduos não em individualidades, mas como “coisa” do grupo, é a luta maior de todos eles, talvez inútil e até desnecessária. Inútil pela impossibilidade de libertação plena do mundo exterior, que nomeia e localiza; desnecessária porque tão cedo é perceptível a diferença nas trajetórias individuais, que separam a concepcionista filha de diplomatas da médica que sofreu abusos na infância. As separa, unindo-as; resultam em escolhas individuais dentro de uma estrutura histórica familiar e societal, de um passado exterior, de uma memória interior.


MEMÓRIA E PRESENTEÍSMO
Morte à memória. O movimento incessante, no tempo e no espaço, é que permite a concepção. Dito de outra forma: para se conceber um novo, é preciso matar o antes. Conceber uma idéia a cada dia, todas as idéias, e ser sincero em todas elas. Ser nada e alcançar a plena liberdade de espírito. Compartilhar com os deuses todas as possibilidades. Alcançar a almejada liberdade de espírito e amar todas as coisas. Não querer nada para si. Querer tudo. Ser nada. Para ser tudo.
Os paradoxos e choques são infinitos. O movimento, no sentido de grupo, se choca ao fim último, que é o indivíduo. Matar a memória para poder constituir-se um outro a cada dia, chocando-se com a idéia de acúmulo de experiência e conhecimento, necessários para o aprendizado da vida diária. O esforço diário para ser nada, na busca de ser tudo. A morte diária do eu para, ao fim, fugir da morte. Ser os cacos quebrados de uma garrafa atirada na parede, como quer Liz, livrando-se deste nome com maiúscula, que a reduz. Sem essencialismos - a não ser que seja essência de morango...
O peso recai no presenteísmo e em sua morte diária, não pela crença na existência de um sentido subterrâneo a todo acontecer, mas na desilusão sobre uma pretensa finalidade do vir-a-ser, retornando, sem alvo, no nada: o eterno retorno. Mas, quem sabe, "não extinguir-se passivamente, mas fazer extinguir-se tudo aquilo que é nesse grau sem sentido e alvo..." Niilismo ativo?...
Os enjeitados aqui não são, decerto, enjeitados politicamente**. E suas ações destituídas de um sentido "maior" operam dentro dos limites que buscam subverter. O uso de múltiplas carteiras de identidade e CPF´s, a troca diária de profissões, o revezamento de sotaques, a provocação pelo escândalo midíatico, o deboche no tribunal... toda a luta por liberdade é feita, pois, pelo e no interior das próprias estruturas que os prendem - dos documentos de registro, da divisão social do trabalho, da linguagem, da comunicação de massa, da justiça moderna...
Bem... aqueles, pois, que vão buscar em A Concepção uma idéia autêntica de interpretação histórica da nossa especificidade brasileira ou ainda um caminho para a emancipação humana... enganam-se. Nesta mesma semana em que escrevo sobre o filme, discuto maio de 1968 e leio a Bravo. Ao contrário da tentativa de fornecer interpretações sociológicas no formato alegorias do subdesenvolvimento, percebo cada vez mais que caminhamos para a leitura trágica em narrativas que não apontam caminhos. Mas usam da crueza e da radicalização de situações mundanas para fazer sentir, fazer pensar. Não menos efetivo, não menos político. Antes, aproveitando honestamente das impressões estéticas que a câmera na mão e a luz brasileira é capaz de doar...


* Ver, por exemplo, Simmel.
** NIEZSCHE, Friederich. Sobre o niilismo e o eterno retorno.

6 comentários:

ed disse...

depois, hidratados por uma cerveja, conversaremos sobre esse tal de 'presenteísmo'... rs. pra mim, o 'novo' só se conebe como tal na procura de algum passado - seja para confirmar a sua rota ou negá-lo, tomá-lo como ponto de comparação... ainda que uma comparação provisória, variada.
(sabe como é essas coisas de pesquisar pessoas "novas", que querem um mundo "novo",né? rs)
bjo.

Rafael Senra disse...

Oi Bebella! Eu to por fora do cinema nacional, aliás, tem um tempo que não vejo filme nenhum... Nas férias, era um por dia, agora o prazo tá indefinido, rs!
Bjos!

Bella Mendes disse...

Ed, hidratados por uma cerveja, fluirá melhor. Mas, de fato, o desejo de morte à memória, e portanto, ao passado, e o anseio pelo novo diário, se mostram mesmo como um conflito insolucionável para os próprios personagens. Foi o que tentei dizer com a idéia do choque entre a concepção (do novo) e o acúmulo da experiência histórica. Mas o anseio pelo sempre-novo é insaciável, e o presente torna-se assim obsoleto antes mesmo de nascer. "Moda, Dona Morte", como cita Benjamin. O novo morre no momento em que surge. Ser outro a cada dia exige um outro para negá-lo, etc. Algo assim...ou não... rs. Bjo.

Bella Mendes disse...

Rafa,
aguardo ansiosa por sua "retomada" ao cinema...
bjos.

Anônimo disse...

Bella análise, lindos textos. Gostei mais da descrição-análise que você faz no "memória e presenteísmo". Achei bem poético-filo-sociológico esse texto e percebi que o próprio filme suscita mesmo uma abordagem por essas perspectivas. Bellíssimo texto, parabéns!! Você me fez gostar mais desse filme, enxergá-lo melhor. Ele é interessante sim, gosto da linguagem dele, do argumento... só não me simpatizei com o "movimento concepcionista", rs, porque não vejo nele uma saída, como ele, de fato, não é, como você mesma mostrou e disse. Beijos. Sandro.

Bella Mendes disse...

Sandro, de fato, no trecho Memória e Presenteísmo, estão presentes os temas que me parecem mais caros ao filme. O texto, inclusive, contém frases que são quase transcrições de falas de personagens (vc deve ter identificado algumas delas). O filme recebeu algumas críticas, especialmente com relação a uma suposta superficialidade dos personagens. Para mim, porém, resta aquela mesma impressão sobre a falta de saída do movimento concepcionista por vc apontada: não há essa intenção-pretensão, nem de trazer personagens explicitamente profundos, nem de dar respostas à tantas contradições... Bom debate!