segunda-feira, 2 de março de 2009

Para não fugir do clichê


O outro lado do mesmo

Ninguém precisa se contentar com a Índia do horário nobre. E já faz tempo que a tela abdicou da função de espelho da realidade. Já foi a época também em que realidade se dizia no singular. E categorizar as tais “realidades imagéticas”, de Bollywood ou de Hollywood, virou um exercício pouco original. Mas já que originalidade também deixou de ser a premissa, minha como do cinema em geral...

Os modos de vida se encontram e se confrontam, fazendo oscilar, na estória e na história, nuances desses mundos – os mundos subterrâneos àquelas indústrias cinematográficas, da ex Mumbai de Jamal Malik de um lado, de Trainspotting e Tio Sam de outro. “Indústria cinematográfica”, aliás, é um termo fecundo para pensarmos “Quem quer ser um milionário?” (Slumdog Millionaire, EUA/Inglaterra, 2008).

A vida do jovem Malik é a vida de Mumbai, futura Bombaim. Vidas, do menino e da cidade, que se misturam e que são contadas pelas luzes e câmeras que nos obrigam a falar de indústria cultural, porque é disso que se trata o “show do milhão” indiano e sua capacidade de impregnar cada percurso individual de maneira massiva. Mas dá gosto de ver a subversão que Malik faz do império dos meios de comunicação e das finalidades capitalistas, que tendem a solapar as finalidades humanas.


Aquele menino que cresce nas favelas indianas dá o tom do mundo desfocado – da pobreza, do preconceito, da violência diária, dos sentimentos de ódio quanto à diferença, dos fanatismos religiosos – e lança luz sobre a Índia que os turistas não pagam pra ver, mas que me faz forçosa e brasileiramente reconhecer os traços de nossa “Era uma vez” diária – ainda que insistam a compará-lo com(para desgosto de Boyle), e apenas com (por sorte de Boyle), “Cidade de Deus”.

Cada surra dada pelos policiais/torturadores de Malik são devidamente anestesiadas por uma nova imagem da TV, o entorpecente mais bem-sucedido que se poderia inventar. A trajetória de perdas e dores sob os olhos de uma criança sem possibilidades de educação e sucesso profissional, contada através do programa de perguntas e respostas – mecanismo único de produção de um vestígio de “justiça social”, esta mercadoria tanto quanto todos os outros valores e ideais da vida moderna e sua vida ilusória.

Experiência do choque, nossa perda da capacidade de narrar nossas próprias experiência, assim como a própria impossibilidade de uma “experiência autêntica”, que o investigador do cinema e de todas as formas de reprodução técnica, Walter Benjamin, vislumbrou na vida do homem do século XIX, mas também do XX, e podemos dizer, agora do XXI. E como nos lembra Maria João Cantinho, “a experiência do choque nasce e desenvolve-se, par a par com a consciência do declínio da aura [...], declínio que faz nascer um mundo ilusioriamente transfigurado, permitam-nos a expressão, “fantasmagorizado”, mediante a necessidade de tornar suportável a história arruinada, num mundo marcado pelo fétiche da mercadoria”. Fantasmagoria que se faz em uma transfiguração falseadora, atenuante de um olhar mais atento sobre as mazelas da vida cotidiana, e nos faz ver apenas o que queremos olhar.

Então, se deixamos de pensar na penúria de Malik, ficamos com a missão apenas de responder, assim como seus torturadores, como a criança sem instrução foi capaz de tantos acertos naquele jogo midiático. Mas, se despertamos, como quer Benjamin, da “sonolência coletiva” do choque e nos investimos de um olhar profundamente inquieto, gélido e barroco do flâneur, e da rememoração poética e melancólica do alegorista, a questão principal pode ser outra. Pode ser, por exemplo, como a menor das preocupações de Malik, este herdeiro direto da era pós-aurática, ainda que do outro lado do mundo, poderia ser com a cifra milionária da sua premiação. A redenção é um clichê, mas não deixa de ser boa: o dinheiro, o meio por excelência que se tornou progressivamente o fim último de todas as buscas, num tempo em que, como esbocei, as finalidades últimas de valores e ideais propriamente humanos foram solapados pela fetichização capitalista, volta a ser meio em “Quem quer ser um milionário?”.

É mais ou menos isso que a mistura de Bolly com Holly mostrou: como fazer dos meios ilusórios e massificadores instrumentos dos anseios individuais, ao ponto de se tornarem , ao fim, também um despertar coletivo, de uma sociedade de consumidores, não só de mercadorias, mas também de sonhos como o de Malik, a busca de sua libertação – que a fórmula dos mitos ensinou, funciona com o amor romântico, mas que é bom lembrar que não apenas com ele, mas com tudo o mais que é humano.