segunda-feira, 15 de setembro de 2008

E por falar em fuzis...



Se constata-se hoje que o cinema, e nós, desistimos de dar explicações e soluções para as raízes e direções de nossas mazelas, restando a não menos difícil tarefa de falar das nossas linhas de impasses... é dizer, pois, que já foi diferente. Com a levada de filmes nacionais a filmar os fuzis, nas mãos da tropa de elite, da tropa do tráfico, da tropa de guris, das grandes corporações e das pequenas mãos – estas que sequer terão a chance de crescer pra segurar com firmeza as “armas brancas” de uma revolução – não poderia deixar de pensar no original: Os Fuzis (Brasil, 1964). Vamos, assim, entrando no Cinema Novo pela porta lateral, aquela deixada aberta por Ruy Guerra e seu olhar estrangeiramente trágico. Pela porta do presente, pois, vislumbremos essa narrativa de 1964. Se falaremos em trágico, falaremos de fossos. Os Fuzis, em forma e conteúdo, revela-se dual. Em narrativa tipicamente cinema-novista, se é que podemos vislumbrar uma tipicidade no “movimento” (aqui mais em termos de mudança e deslocamento do que de organização uniforme), está a estória da fé. Contada com a voz dissonante de um narrador pouco linear, com planos inovadores e cortes bruscos. Em tais primeiros planos, aparecem, pois, os condenados da terra, a voz estridente e confusa do narrador místico, a contar com todos os requintes da oralidade, a fé dos esfomeados seguidores do boi eleito. O mundo, a fome, a seca, a chuva, a fartura, a guerra, o perdão, são dados e tirados pelo Deus corporificado no boi, a ser levado para lá e para cá em procissão sob ramos. Em contra-campo, em narrativa “clássica”, com atores-personagens devidamente caracterizados e nomeados, identificados pela justeza ou não de caráter, surgidos em ordem cronológica e de relevância, com heróis, vilões, mocinha e bandido, está a estória do fuzil. A instituição impessoal e abstrata do Exército, respondendo ordens do impessoal e abstrato Estado, pegam suas armas e se embrenham no sertão brasileiro, a proteger a propriedade dos coronéis pouco abstratos ou impessoais, assombrados pela possibilidade do saque de seus estoques pela gente esfomeada. Aquela, que anda para cima e para baixo a puxar o boi.

Típica dualidade colocada pelo projeto moderno. Em nome da ordem, a instituição destituída de moralidade (ou antes, dotada de uma moralidade outra) é responsável por estabelecer a normalidade (que consiste, aqui, em deixar os famintos com fome e os proprietários com propriedades). Para tanto, há uma corporação devidamente treinada, uniforme e uniformizada, com suas técnicas e tecnologias adequadas e desenvolvidas, das quais os esfomeados dependem/confiam/desconhecem. Esfomeados a solicitar ao boi-Deus a chuva necessária enquanto vêem seus filhos morrer de fome.
A fragilidade desta relação já é conhecida pelo nosso “herói”: o único que conheceu de dentro a corporação, e saiu dela. Um desertor. Que agora está do lado dos esfomeados, destituído porém do elemento irracionalizador da fé no boi. A redenção pela consciência. O desertor é redimido da ignorância, por ser conhecedor das causas sócio-históricas da nossa condição desigual de existência, o que não implica em salvação real do homem cravejado pelos tiros dos fuzis “racionais”. O povo é redimido pelo boi, o mediador que, sendo morto a facadas “irracionais” a cortar carne, cumpre seu papel imediato, de saciar a fome. Falência da razão e da fé. Daí nossa entrada pelo Cinema Novo. Ruy Guerra mata o boi, como quem mata as falsas origens da nossa miséria, aproximando-se das alegorias cinematográficas do período, empenhadas em fornecer explicações macro-sociológicas a partir das micro-relações dos universos narrativos. Mas daí, também, nossa entrada lateral, pois na falência da razão e na falência da fé, na morte do herói desfigurado e inércia dos conscientes ou dos famigerados,a força da "insolução" pode falar mais alto...

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Era uma vez...


... a invisibilidade.

Das luzes do morro – das casas e dos fuzis. Contada assim, feito um conto antigo, que ninguém consegue dizer onde começou. Não que nunca tenham tentado. As alegorias do subdesenvolvimento cinema-novistas já lançavam as lentes sobre os condenados da terra. Em forma de manifesto, portanto de movimento, estético e ideológico, compartilhavam da tentativa de fazer significar nossa escassez e explicar as origens desta. Para onde foi, entretanto, o povo que faltava?

Morre-nasce nos morros do Cantagalo; vive-morre no asfalto de Ipanema. O já clichê da Cidade Partida”, que se cruza e não se resolve. Não é difícil ver as discrepâncias entre o meio da classe média falida, de recursos e valores, donde abre-se um fosso entre a riqueza material e o cultivo moral; e o meio favela, das subclasses semi-desprovidas de escolha. Mas, chega um ponto em que é muito mais difícil ver as distinções do que as semelhanças entre esses mundos retratados por Breno Silveira (Era uma vez, Brasil, 2008). Retratados, mesmo, com todos os requintes de “realidade” documental de se filmar no lócus da história e abusar das referências de obras como "174" e de seu trabalho com Eduardo Coutinho.

É polêmico, mas não simplista. Aproximar o mundo de conto de fadas (do castelo em ruínas) de Nina e os sonhos solapados como uma bola dividida, de Dé. Este, que cresce com a arma apontada na cabeça, e ainda assim dá-se ao luxo de ser honesto. Aquela, que rodeada de relações superficiais pautadas em corrupção e mediocridade, ousa cruzar a linha, a rua, os portões de ferro. Os mundos se cruzam no tráfico e raves; nos preconceitos mútuos sobre o outro e sobre o si mesmo; nas barreiras que se cria para proteção contra o outro, que restringe pois as possibilidades de encontros; nas relações de dominação, subordinação e humilhação, pelo dinheiro, pelo status, pelo mando, pela ordem; no fechar os olhos e lavar as mãos para a violência do lado de fora, das vidraças e dos barracos...

Mas os mundos são obrigados a se entrecruzar, efetivamente, embaralhando e revelando aproximações, por algo maior que terror, que medo, que ódio, mas para o qual somos igualmente impotentes: o amor. Há de se lembrar que esse é o pano de fundo para o argumento. E por mais que os vitimados por esse sentimento tentem ficar atrás de suas trincheiras historicamente erguidas, não há muito como lutar.

Mas a viabilização do amor é sufocada pelas tensões da vida que corre por fora. Tem gente que vira bandido porque é ruim. Mas tem gente que não – tenta Dé explicar e mesmo entender “escolhas” e constrangimentos que levam a elas, como comenta um atento amigo meu. Dos meninos que crescem jogando bola, esperando a mirada do olheiro do Flamengo e apertam os olhos frente a páginas já escritas, tentando ler velhas e novas histórias. Vendem o que tiver que vender - droga, cachorro-quente, malabares. Questão de escolha?

Já adiantei: a estória não é nova. Muitos guris já foram cantados. Muitos romances entre plebeu e princesa contados. Muitas favelas filmadas. Mas há novos e mesmo tristes contornos, da naturalização e banalização da violência, da morte como solução para a falta desta, de não somente heróis assassinos mas, antes, heróis assassinados. Desculpe o clichê, mas estamos longe de fechar nosso Era uma vez diário com um felizes para sempre. Não há resposta. Não há sequer explicação. E parece que faz algum tempo que nós (o cinema e sabe-se mais quem) deixamos de lado tal pretensão. Ou faz algum tempo que nos deixou de lado a garantia e possibilidade de fornecer explicação.
(Mas, repito: Não menos efetivo, não menos político. Pelo menos no que diz respeito ao cinema...)

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

A (dis) solução niilista de "A Concepção"


(ou AINDA ENTRE SUPERFÍCIE E SUBTERRÂNEO)

As lutas que o indivíduo trava diariamente com as existências exteriores a ele são muitas e as mais diversas. São ainda incansáveis e, ao que parece, sem solução definitiva. A busca de libertação frente a quaisquer ordem de força coercitiva, (da sociedade, da cultura exterior, da técnica da vida, da autoridade da consciência, da razão ou da história...) parece ser o mote do “movimento concepcionista”, aquela espécie de evento, com duração de 3 meses, pelos quais passaram os personagens do filme de José Eduardo Belmonte (A Concepção, Brasil, 2005).

Ênfase em tais nomes, que evocam antes idéias: movimento e concepção.

Aqui, podemos aliar então dois elementos antagônicos (um dos muitos outros pares que A Concepção nos trará): o da agregação coletiva em torno do “movimento concepcionista” e o mote clamado por “X”, suposto líder do grupo - somente o indivíduo é capaz de resolver os seus conflitos. O tal grupo, formado subitamente em torno deste anti-guru que é X, reúne jovens adultos da classe média e média alta de Brasília, a cidade que “se tivesse um livro de História, teria 10 páginas”. A princípio, essa primeira caracterização nos permite deduzir valores e trajetórias comuns, indivíduos assim possivelmente nivelados e rotulados pelos seus “mapas” identitários “legitimamente” criados nas sociedades modernas. De fato, é inegável que há tantos traços comuns entre aquelas figuras que comprarão a idéia da “morte ao ego” e invadirão o apartamento de Alex, tornando-o o reduto das práticas concepcionistas (em resumo, freqüentes uso de drogas e orgias, que transmitem a idéia de que a apatia e neurastenia frente à vida surgem tanto daquelas impressões inofensivas e efêmeras da vida cotidiana quanto dos excessos de estímulo e excitação buscados incessantemente para sair daquela*). Talvez, aí esteja o maior traço comum entre personagens díspares, o fato de terem tantos "mapas", os quais, porém, são externos a eles e não oferecem amparo. Daí, o que leva o espectador por muitas vezes, e até o fim, perceber tais indivíduos não em individualidades, mas como “coisa” do grupo, é a luta maior de todos eles, talvez inútil e até desnecessária. Inútil pela impossibilidade de libertação plena do mundo exterior, que nomeia e localiza; desnecessária porque tão cedo é perceptível a diferença nas trajetórias individuais, que separam a concepcionista filha de diplomatas da médica que sofreu abusos na infância. As separa, unindo-as; resultam em escolhas individuais dentro de uma estrutura histórica familiar e societal, de um passado exterior, de uma memória interior.


MEMÓRIA E PRESENTEÍSMO
Morte à memória. O movimento incessante, no tempo e no espaço, é que permite a concepção. Dito de outra forma: para se conceber um novo, é preciso matar o antes. Conceber uma idéia a cada dia, todas as idéias, e ser sincero em todas elas. Ser nada e alcançar a plena liberdade de espírito. Compartilhar com os deuses todas as possibilidades. Alcançar a almejada liberdade de espírito e amar todas as coisas. Não querer nada para si. Querer tudo. Ser nada. Para ser tudo.
Os paradoxos e choques são infinitos. O movimento, no sentido de grupo, se choca ao fim último, que é o indivíduo. Matar a memória para poder constituir-se um outro a cada dia, chocando-se com a idéia de acúmulo de experiência e conhecimento, necessários para o aprendizado da vida diária. O esforço diário para ser nada, na busca de ser tudo. A morte diária do eu para, ao fim, fugir da morte. Ser os cacos quebrados de uma garrafa atirada na parede, como quer Liz, livrando-se deste nome com maiúscula, que a reduz. Sem essencialismos - a não ser que seja essência de morango...
O peso recai no presenteísmo e em sua morte diária, não pela crença na existência de um sentido subterrâneo a todo acontecer, mas na desilusão sobre uma pretensa finalidade do vir-a-ser, retornando, sem alvo, no nada: o eterno retorno. Mas, quem sabe, "não extinguir-se passivamente, mas fazer extinguir-se tudo aquilo que é nesse grau sem sentido e alvo..." Niilismo ativo?...
Os enjeitados aqui não são, decerto, enjeitados politicamente**. E suas ações destituídas de um sentido "maior" operam dentro dos limites que buscam subverter. O uso de múltiplas carteiras de identidade e CPF´s, a troca diária de profissões, o revezamento de sotaques, a provocação pelo escândalo midíatico, o deboche no tribunal... toda a luta por liberdade é feita, pois, pelo e no interior das próprias estruturas que os prendem - dos documentos de registro, da divisão social do trabalho, da linguagem, da comunicação de massa, da justiça moderna...
Bem... aqueles, pois, que vão buscar em A Concepção uma idéia autêntica de interpretação histórica da nossa especificidade brasileira ou ainda um caminho para a emancipação humana... enganam-se. Nesta mesma semana em que escrevo sobre o filme, discuto maio de 1968 e leio a Bravo. Ao contrário da tentativa de fornecer interpretações sociológicas no formato alegorias do subdesenvolvimento, percebo cada vez mais que caminhamos para a leitura trágica em narrativas que não apontam caminhos. Mas usam da crueza e da radicalização de situações mundanas para fazer sentir, fazer pensar. Não menos efetivo, não menos político. Antes, aproveitando honestamente das impressões estéticas que a câmera na mão e a luz brasileira é capaz de doar...


* Ver, por exemplo, Simmel.
** NIEZSCHE, Friederich. Sobre o niilismo e o eterno retorno.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Jogos da superfície e jogos subterrâneos


Narrativas, estéticas, linguagens, interesses, separados, a princípio, pelo lapso de 14 anos. Mas não é só distância que há entre os dois únicos longas de Roberto Gervitz (Feliz Ano Velho e Jogo Subterrâneo). E nem é só a distância temporal, obviamente, que os marca.

Se sentirmos as marcas históricas que seus personagens carregam, entendemos a dimensão de indivíduos, sujeitos e sujeitados, àquela famosa marcha do duvidoso "progresso" impelida por nossas instituições, estruturas e contextos macro-sociais, que se impõem objetivamente às nossas vidas. Mas como essas estruturas se ligam aos nossos modos mais íntimos, mais "subterrâneos", de agir e reagir a tais formas objetivas? Há uma conexão, ainda que esta se mostre muitas vezes como um fosso trágico entre experiências subjetivas e mundo à nossa volta. A ausência de sentido das relações que Martín estabele no seu jogo realizado sob o teto da metrópole, nas linhas de metrô, é resposta e pergunta para o mundo da década de 1980 de Mário...

JOGO SUBTERRÂNEO

Martín, protagonista de Jogo Subterrâneo
(Brasil, 2004), constrói para si um jogo, no intuito de lidar "confortavelmente" com uma das várias dimensões incontroláveis da vida: o amor. Vai ao metrô diariamente, com uma pequena caderneta (o tal Manuscrito encontrado em um bolso, conto de Julio Cortázar no qual foi inspirado o roteiro), escolhe uma mulher para investir sua sorte, e passa a acompanhá-la, primeiramente com o olhar, observando os seus modos e criando para ela um nome e possibilidades de reciprocidade, para posteriormente, segui-la efetivamente pela estação do metrô. Segue a "peça" escolhida pelas linhas (Verde, Azul, Lilás...), desde que seus caminhos sejam o mesmo. "Dois caminhos, um destino", essa é a busca de Martín, nas suas próprias palavras e linhas das mãos. Porém, se a escolhida toma um trajeto diferente do que ele havia traçado para si, o jogo recomeça. Deve-se voltar ao vagão e escolher nova peça.

Se a primeira e mais vaga impressão é a ausência de sentido, deve-se prestar atenção para o inquestionável sentido que Martín e seu jogo conferem à tudo isso. Há regras claras, que limitam suas ações e restringem as possibilidades. A busca essencialmente desprovida de lógica - a busca pelo encontro com o amor - ganha os contornos de ações fundadas na racionalidade e na calculabilidade dos trajetos, ponteiros, bilhetes, mapas, escolhas, "peças" que perpassam os trilhos do metrô. Um tipo de aventureiro, que trata o que na vida é incalculável como tratamos o que pode ser calculado com segurança, apostando tudo, mas na chance flutuante. Aliás, esse tipo descrito pelo pensador alemão Georg Simmel
me parece esclarecedor das atitudes de Martín. Este reúne em si muitos dos tipos que Simmel aproxima da experiência da aventura: o artista, o conquistador na relação amorosa e o jogador, que carrega também certa dose de infantilidade. Como pianista que Martín é, portanto como artista, a analogia é a de que assim como a obra de arte está além da vida por constituir-se em uma existência autônoma em relação à realidade, a aventura está além da vida enquanto processo ininterrupto. A aventura determina seus próprios limites, constituindo-se parte da existência enquanto entrelaçada na interrupção dos acontecimentos, mas sendo sentida pelo personagem como uma totalidade. Aventura e arte extrapolando o contexto da vida. Na relação amorosa, Martín une a força conquistadora à concessão não-constrangida de que fala Simmel, vivenciando o ganho advindo da capacidade e dependência da sorte. Como jogador, o protagonista busca, fazer da ausência de sistema da sua vida um sistema de vida, na busca de sair de seu isolamento e de conciliar o irreconciliável da natureza humana: ação e sofrimento, atividade e passividade, acaso e necessidade... Possíveis (re)ações ao mundo que passa por cima de sua cabeça, do lado de fora e em cima do teto que o "protege" e o expõe: ao histórico desmantelamento vivenciado pelos indivíduos que circulam entre os asfaltos e prédios cinzas da grande cidade que situa e impele, sufoca e liberta...

JOGO DE SUPERFÍCIE
Os ruídos, o movimento, as ruas e praças cheias de gente, estímulos, cores, carros, coisas, da grande cidade paulistana me impede de ouvir por vezes a voz de Mário e seus interlocutores em Feliz Ano Velho (Brasil, 1988). Vozes historicamente sufocadas daqueles que precisam reaprender a andar sozinhos. De novo a aventura, mas do seu lado inverso; enquanto o aventureiro é o exemplo forte do "homem a-histórico", que não é definido por nenhum passado, Mário parece ser incondicionalmente fruto de uma história, que está ao mesmo tempo alienada dele, mas da qual ele sente ainda os grilhões. Interessante, entretanto, que os acontecimentos ditos históricos que determinam o contexto dessa gente tetraplégica diante do contexto da (re)democratização e aberturas brasileira, são vivenciados de maneira um tanto descolada, que os leva a fazer política "com raiva" e a compor canções cujo mote é o "xerox". Uma geração que tenta, com dificuldade, imprimir agora sua própria imagem diante da tela em branco da vida enquanto processo. Homens e mulheres um tanto a-históricos portanto, pois são seres do presente, para os quais não há futuro.

Depois de um acidente, que até o fim do filme não sabemos qual foi, Mário fica preso à cadeira de rodas e é nesse novo momento de sua vida que ele vai buscar nas memórias as cores para seu quadro atual, sua pintura do presente. Através dessa rememoração, a vida quase monocromática dos personagens (é o azul que colore as cenas do presente) vai ganhando tingimentos novos (o vermelho e o amarelo do passado juvenil). Surgem as lembranças do pai, desaparecido durante a ditadura militar brasileira, e que explicam a maneira órfã de Mário lidar com suas escolhas, com o mundo acadêmico e do trabalho, com os amigos, com os desconhecidos, e, enfim, com o amor. Surgem, assim, as lembranças também desses modos e escolhas. Um Mário do passado, que entra na faculdade sem saber se estava no curso certo, que entra no movimento estudantil sem saber as causas certas, que começa e termina um namoro sem saber o porquê, e que acorda sem andar em um hospital sem saber os motivos e consequências daquela condição nova. Lembranças de um tempo em que amar era estar "afim", em que a música de festival virou rock, em que bebida "nacional" era coca-cola, em que fazer política é montar barraca na frente da universidade, e subversão é se reunir com o reitor de pijamas. Um tempo, portanto, de aberturas e liberdades, políticas, econômicas, culturais e sexuais, com a marca do excesso da década de 1980, um excesso fragmentado e desprovido de sentido, com o qual os personagens se cercam para rabiscar suas telas - mas só os que suportam o seu branco, e que entretanto buscam superá-lo (como o artista, figura marcante também neste filme) conseguem reunir, de maneira reflexiva, os cacos para contruir de novo aquela unidade perdida...