Narrativas, estéticas, linguagens, interesses, separados, a princípio, pelo lapso de 14 anos. Mas não é só distância que há entre os dois únicos longas de Roberto Gervitz (Feliz Ano Velho e Jogo Subterrâneo). E nem é só a distância temporal, obviamente, que os marca.
Se sentirmos as marcas históricas que seus personagens carregam, entendemos a dimensão de indivíduos, sujeitos e sujeitados, àquela famosa marcha do duvidoso "progresso" impelida por nossas instituições, estruturas e contextos macro-sociais, que se impõem objetivamente às nossas vidas. Mas como essas estruturas se ligam aos nossos modos mais íntimos, mais "subterrâneos", de agir e reagir a tais formas objetivas? Há uma conexão, ainda que esta se mostre muitas vezes como um fosso trágico entre experiências subjetivas e mundo à nossa volta. A ausência de sentido das relações que Martín estabele no seu jogo realizado sob o teto da metrópole, nas linhas de metrô, é resposta e pergunta para o mundo da década de 1980 de Mário...
JOGO SUBTERRÂNEO
Martín, protagonista de Jogo Subterrâneo (Brasil, 2004), constrói para si um jogo, no intuito de lidar "confortavelmente" com uma das várias dimensões incontroláveis da vida: o amor. Vai ao metrô diariamente, com uma pequena caderneta (o tal Manuscrito encontrado em um bolso, conto de Julio Cortázar no qual foi inspirado o roteiro), escolhe uma mulher para investir sua sorte, e passa a acompanhá-la, primeiramente com o olhar, observando os seus modos e criando para ela um nome e possibilidades de reciprocidade, para posteriormente, segui-la efetivamente pela estação do metrô. Segue a "peça" escolhida pelas linhas (Verde, Azul, Lilás...), desde que seus caminhos sejam o mesmo. "Dois caminhos, um destino", essa é a busca de Martín, nas suas próprias palavras e linhas das mãos. Porém, se a escolhida toma um trajeto diferente do que ele havia traçado para si, o jogo recomeça. Deve-se voltar ao vagão e escolher nova peça.
Se a primeira e mais vaga impressão é a ausência de sentido, deve-se prestar atenção para o inquestionável sentido que Martín e seu jogo conferem à tudo isso. Há regras claras, que limitam suas ações e restringem as possibilidades. A busca essencialmente desprovida de lógica - a busca pelo encontro com o amor - ganha os contornos de ações fundadas na racionalidade e na calculabilidade dos trajetos, ponteiros, bilhetes, mapas, escolhas, "peças" que perpassam os trilhos do metrô. Um tipo de aventureiro, que trata o que na vida é incalculável como tratamos o que pode ser calculado com segurança, apostando tudo, mas na chance flutuante. Aliás, esse tipo descrito pelo pensador alemão Georg Simmel me parece esclarecedor das atitudes de Martín. Este reúne em si muitos dos tipos que Simmel aproxima da experiência da aventura: o artista, o conquistador na relação amorosa e o jogador, que carrega também certa dose de infantilidade. Como pianista que Martín é, portanto como artista, a analogia é a de que assim como a obra de arte está além da vida por constituir-se em uma existência autônoma em relação à realidade, a aventura está além da vida enquanto processo ininterrupto. A aventura determina seus próprios limites, constituindo-se parte da existência enquanto entrelaçada na interrupção dos acontecimentos, mas sendo sentida pelo personagem como uma totalidade. Aventura e arte extrapolando o contexto da vida. Na relação amorosa, Martín une a força conquistadora à concessão não-constrangida de que fala Simmel, vivenciando o ganho advindo da capacidade e dependência da sorte. Como jogador, o protagonista busca, fazer da ausência de sistema da sua vida um sistema de vida, na busca de sair de seu isolamento e de conciliar o irreconciliável da natureza humana: ação e sofrimento, atividade e passividade, acaso e necessidade... Possíveis (re)ações ao mundo que passa por cima de sua cabeça, do lado de fora e em cima do teto que o "protege" e o expõe: ao histórico desmantelamento vivenciado pelos indivíduos que circulam entre os asfaltos e prédios cinzas da grande cidade que situa e impele, sufoca e liberta...
JOGO DE SUPERFÍCIE
Se sentirmos as marcas históricas que seus personagens carregam, entendemos a dimensão de indivíduos, sujeitos e sujeitados, àquela famosa marcha do duvidoso "progresso" impelida por nossas instituições, estruturas e contextos macro-sociais, que se impõem objetivamente às nossas vidas. Mas como essas estruturas se ligam aos nossos modos mais íntimos, mais "subterrâneos", de agir e reagir a tais formas objetivas? Há uma conexão, ainda que esta se mostre muitas vezes como um fosso trágico entre experiências subjetivas e mundo à nossa volta. A ausência de sentido das relações que Martín estabele no seu jogo realizado sob o teto da metrópole, nas linhas de metrô, é resposta e pergunta para o mundo da década de 1980 de Mário...
JOGO SUBTERRÂNEO
Martín, protagonista de Jogo Subterrâneo (Brasil, 2004), constrói para si um jogo, no intuito de lidar "confortavelmente" com uma das várias dimensões incontroláveis da vida: o amor. Vai ao metrô diariamente, com uma pequena caderneta (o tal Manuscrito encontrado em um bolso, conto de Julio Cortázar no qual foi inspirado o roteiro), escolhe uma mulher para investir sua sorte, e passa a acompanhá-la, primeiramente com o olhar, observando os seus modos e criando para ela um nome e possibilidades de reciprocidade, para posteriormente, segui-la efetivamente pela estação do metrô. Segue a "peça" escolhida pelas linhas (Verde, Azul, Lilás...), desde que seus caminhos sejam o mesmo. "Dois caminhos, um destino", essa é a busca de Martín, nas suas próprias palavras e linhas das mãos. Porém, se a escolhida toma um trajeto diferente do que ele havia traçado para si, o jogo recomeça. Deve-se voltar ao vagão e escolher nova peça.
Se a primeira e mais vaga impressão é a ausência de sentido, deve-se prestar atenção para o inquestionável sentido que Martín e seu jogo conferem à tudo isso. Há regras claras, que limitam suas ações e restringem as possibilidades. A busca essencialmente desprovida de lógica - a busca pelo encontro com o amor - ganha os contornos de ações fundadas na racionalidade e na calculabilidade dos trajetos, ponteiros, bilhetes, mapas, escolhas, "peças" que perpassam os trilhos do metrô. Um tipo de aventureiro, que trata o que na vida é incalculável como tratamos o que pode ser calculado com segurança, apostando tudo, mas na chance flutuante. Aliás, esse tipo descrito pelo pensador alemão Georg Simmel me parece esclarecedor das atitudes de Martín. Este reúne em si muitos dos tipos que Simmel aproxima da experiência da aventura: o artista, o conquistador na relação amorosa e o jogador, que carrega também certa dose de infantilidade. Como pianista que Martín é, portanto como artista, a analogia é a de que assim como a obra de arte está além da vida por constituir-se em uma existência autônoma em relação à realidade, a aventura está além da vida enquanto processo ininterrupto. A aventura determina seus próprios limites, constituindo-se parte da existência enquanto entrelaçada na interrupção dos acontecimentos, mas sendo sentida pelo personagem como uma totalidade. Aventura e arte extrapolando o contexto da vida. Na relação amorosa, Martín une a força conquistadora à concessão não-constrangida de que fala Simmel, vivenciando o ganho advindo da capacidade e dependência da sorte. Como jogador, o protagonista busca, fazer da ausência de sistema da sua vida um sistema de vida, na busca de sair de seu isolamento e de conciliar o irreconciliável da natureza humana: ação e sofrimento, atividade e passividade, acaso e necessidade... Possíveis (re)ações ao mundo que passa por cima de sua cabeça, do lado de fora e em cima do teto que o "protege" e o expõe: ao histórico desmantelamento vivenciado pelos indivíduos que circulam entre os asfaltos e prédios cinzas da grande cidade que situa e impele, sufoca e liberta...
JOGO DE SUPERFÍCIE
Os ruídos, o movimento, as ruas e praças cheias de gente, estímulos, cores, carros, coisas, da grande cidade paulistana me impede de ouvir por vezes a voz de Mário e seus interlocutores em Feliz Ano Velho (Brasil, 1988). Vozes historicamente sufocadas daqueles que precisam reaprender a andar sozinhos. De novo a aventura, mas do seu lado inverso; enquanto o aventureiro é o exemplo forte do "homem a-histórico", que não é definido por nenhum passado, Mário parece ser incondicionalmente fruto de uma história, que está ao mesmo tempo alienada dele, mas da qual ele sente ainda os grilhões. Interessante, entretanto, que os acontecimentos ditos históricos que determinam o contexto dessa gente tetraplégica diante do contexto da (re)democratização e aberturas brasileira, são vivenciados de maneira um tanto descolada, que os leva a fazer política "com raiva" e a compor canções cujo mote é o "xerox". Uma geração que tenta, com dificuldade, imprimir agora sua própria imagem diante da tela em branco da vida enquanto processo. Homens e mulheres um tanto a-históricos portanto, pois são seres do presente, para os quais não há futuro.
Depois de um acidente, que até o fim do filme não sabemos qual foi, Mário fica preso à cadeira de rodas e é nesse novo momento de sua vida que ele vai buscar nas memórias as cores para seu quadro atual, sua pintura do presente. Através dessa rememoração, a vida quase monocromática dos personagens (é o azul que colore as cenas do presente) vai ganhando tingimentos novos (o vermelho e o amarelo do passado juvenil). Surgem as lembranças do pai, desaparecido durante a ditadura militar brasileira, e que explicam a maneira órfã de Mário lidar com suas escolhas, com o mundo acadêmico e do trabalho, com os amigos, com os desconhecidos, e, enfim, com o amor. Surgem, assim, as lembranças também desses modos e escolhas. Um Mário do passado, que entra na faculdade sem saber se estava no curso certo, que entra no movimento estudantil sem saber as causas certas, que começa e termina um namoro sem saber o porquê, e que acorda sem andar em um hospital sem saber os motivos e consequências daquela condição nova. Lembranças de um tempo em que amar era estar "afim", em que a música de festival virou rock, em que bebida "nacional" era coca-cola, em que fazer política é montar barraca na frente da universidade, e subversão é se reunir com o reitor de pijamas. Um tempo, portanto, de aberturas e liberdades, políticas, econômicas, culturais e sexuais, com a marca do excesso da década de 1980, um excesso fragmentado e desprovido de sentido, com o qual os personagens se cercam para rabiscar suas telas - mas só os que suportam o seu branco, e que entretanto buscam superá-lo (como o artista, figura marcante também neste filme) conseguem reunir, de maneira reflexiva, os cacos para contruir de novo aquela unidade perdida...
7 comentários:
Extrema sensibilidade, respaldo teórico inquestionável e escuta diferenciada marcam, para mim, este excelente texto.
Parabéns!
Agna Farias.
não teve jeito... eu acabei me lembrando do comentário da alessandra na sua defesa da monô: vc tem uma capacidade, muito rara, de conseguir tratar de um filme fazendo com que a gente sinta vontade de vê-lo. esse seu jeito de mostrar sem revelar, sem esgotar, continua sendo encantador... cada vez mais bonito, e encantador.
bjo.
Putz, lindos os textos, estou sem palavras. Tenho lembrado muito das nossas conversas lá no Cineclube. Em todos os textos que, na verdade, reli, tenho lembrado muito dos nossos encontros. Admiro cada vez mais você. Parabéns!! E estes dois filmes são realmente muito marcantes para mim. Tratam de coisas que me tocam muito profundamente. Que venham muito mais filmes e textos. Eu tê-lo assumido, o Cineclube, proporcionou encontros muito felizes. Beijos...
Sandro, os dois filmes, ainda que muito diferentes, são mesmo igualmente interessantes, como pudemos perceber nas discussões do próprio Cineclube. Bom trabalho pra vc por lá! Bjo e obrigada pelo comentário.
Olá Isabella,
queria te agradecer e cumprimentar pelo texto que relaciona de maneira muito interessante e que ainda não havia visto os meus dois filmes, Feliz Ano Velho e Jogo Subterrâneo. Você fez um trabalho que a maioria dos críticos já não se dão mais o tempo ou não sabem fazer. Me emocionou, muito obrigado e uma beijo,
Roberto Gervitz
Olá, estimado diretor!
Muito obrigada pela leitura e comentário do texto. Fiquei extremamente lisonjeada e ainda mais motivada a continuar este trabalho experimental. Os seus filmes foram os primeiros do blog, portanto, os provocadores originários dessa pequena iniciativa - que se tornou agora ainda mais relevante para mim!
Beijo.
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