quarta-feira, 14 de março de 2012

HISTÓRIAS PRA ACORDAR


Impregnar a concretude da vida cotidiana de sentido. Colorir a experiência vivida com as fantasias que a criança já nasce sabendo inventar. Esta é a habilidade do mineiro Roberto Carlos, criança e artista, narrador e narrado, que redime, mas com narrativas ficcionais, um passado, uma guerra que já começou perdida, como diria a resignada diretora da FEBEM.




Fé, Educação, Bons modos, Esperança, Moral: o anúncio na TV do vizinho - vislumbrada por todas as famílias da comunidade sagradamente aos domingos - é uma das primeiras ficções a impregnar, deturpando, a vida cotidiana com as cores da ideologia do Estado. É de maneira desarmada, quiçá encantada, que a mãe conduz o filho ao ambiente que promete tanto, mas que oferecerá apenas a mais dura realidade da vida vivida, em oposição aos devaneios do menino: sua arbitrariedade, seu caráter trágico, e nossa impotência diante do seu desenrolar. Assim, o embate entre a liberdade, inventividade e autonomia do sujeito versus as condições estruturais do Brasil dos anos 1970 e sua apresentação performada ideologicamente, faz com que o O Contador de Histórias (2009) explique menos e conte mais. 

Ou seja: o filme é, mais do que explicação, redenção. A narrativa - fílmica - recusa a explicação fácil e pedagógica, de sucesso, de progresso, que daria conta de dizer, a despeito do sujeito, e a despeito da estrutura, como Roberto deixou de falar puta que la merda e se tornou professor. A narrativa fílmica, mais do que isso, faz com que Roberto pare, ao menos por 90 minutos, de contar histórias de terror e causos fantasiosos para, finalmente, contar a história dos vencidos, os derrotadas naquela guerra que começara perdida. Aqui, ele é o narrador benjaminiano: o contador de histórias que se baseia na experiência autêntica para impedir que o passado caia no esquecimento das gerações futuras. 

Como um contador de histórias, entretanto, ele não o faz de maneira convencional. Usa seu olhar atento de criança, olhar que se detém sobre o detalhe insignificante, e confere ao contexto vivido pinceladas rápidas de um artista quando pinta. Ganham cor a favela acinzentada, brilho reluzente a faca do amolador, dimensões gigantescas as pernas da vendedora de biju, picadeiro o pátio da FEBEM. O ponto alto, porém, está na transformação de um roubo nas ruas belorizontinas, praticado pela gangue mirim de Roberto, em uma jogada ensaiada de uma partida de futebol. O esporte no qual o povo brasileiro, oprimido pelas ditaduras – a política, militar, e a econômica, da desigualdade – se lançava em possibilidade única do grito, da explosão, da massa. O devaneio subverte o contexto original recusando o seu privilégio: a rua é um imenso gramado, os apressados habitantes da cidade o time adversário, os moleques fugitivos um grande time, de jogadores criativos, brilhantes. 

É ainda o futebol que marca a transformação de Roberto em Robertô: ao se compreender como humano, não mais "irrecuperável", não mais de olhos no chão, cuja cor, negra, é de dar inveja à sua mãe adotiva francesa – a Madame -, Roberto adentra o Mineirão, sob bandeiras e hinos, vitorioso antes mesmo do início da partida. Uma partida que já começou ganha.


Para a discussão a respeito das convenções, características, linguagens e ideologias presentes na ficção e na vida cotidiana, ver STEWART, Susaz. On longin: Narratives of the Miniature, the Gigantic, the Souvenir, the Collection. Duke University Press: 2007.

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