quinta-feira, 23 de julho de 2009

ELES USAM BLACK TIE


Mais um filme não brazuca no blog, apesar da ênfase na produção nacional. Mas o motivo que me leva a passear por Índia e França é o fato de filmes como O Corte (Costa-Gavras, FR/BEL/EPS, 2005) dizer de maneira tão perspicaz, tão urbana e suburbana, tão doce e tão rude, crua e fantasiosamente, dessa vida, mesmo a nossa, brasileira, que aparece nas tais películas cinematográficas estrangeiras.

Impressiona o fato de que qualquer um de nós pode se identificar com o protagonista de O Corte, Bruno Davert – diga-se de passagem, um serial killer! Tudo bem, não é a primeira vez que a arte consegue humanizar o malfeitor e misturar nossas concepções de bem e mal. Não é a primeira vez que a vida faz a gente torcer pelo cara que aperta o gatilho, e se colocar no lugar daquela gente que chuta bandido na rua. Mas a maneira como o cineasta grego, naturalizado francês, autor de filmes tão politizados e engajados, comprometido com temas “pesados”, universalmente mas também historicamente relevantes – Holocausto em Amém (2002), ditaduras militares em Desaparecidos(1982) e Z (1969) – consegue tal façanha, é curiosa...

A verossimilhança no horror atual

Há algumas teses* de que o cinema de horror, ou sua “codificação retórica do mal”, tem progressivamente se tornado verossímel, mesmo nos casos em que trabalha um sobrenatural parcialmente em descrédito (como acontece em O Corte, com a cena do fantasma no porta-malas do carro; na verdade, um dos clichês ironicamente mobilizado por Costa-Gravas). Para tornar o mal e até o bizarro acessíveis, o cinema se utilizaria de: 1) uma determinada “tópica” (“aquelas formidáveis idéias gerais de vasto alcance que aparecem periódica e infindavelmente na literatura” – Marrou) , 2) de uma “retórica da imagem” (Barthes) e 3) de sua interação com o raciocínio do espectador e com as características da sociedade burguesa – a produtora, afinal de contas, da forma cinema. Este constitui instrumento de “mimese secundária”, através da qual o público se fixa com a objetividade “dos fluxos fílmicos e tende a repetir os modelos culturais absorvidos durante a projeção, os quais, por sua vez, eram já uma projeção social” (Canevacci). Voltando à tese sobre o horror, o cinema projetaria na tela o mesmo jogo da vida: o declínio de nossas sociedades modernas ocidentais é filmado como declínio moral, especialmente a partir dos anos 1970 – movimento, porém, que pode ser percebido muitos anos antes, por exemplo, na literatura, com O Fausto.

O que o filme de Gravas e o cinema de horror dos dias atuais tem em comum é a explicitação das contradições de tal sociedade burguesa, em especial a de nossos dias – e aí está a chave para sua verossimilhança. Está em jogo em tais narrativas o significado e o resultado dos processos de racionalização e secularização que trouxeram uma determinada concepção de indivíduo. Esta concepção encontra em Bruno – o pai de família da classe média francesa que decide matar seus concorrentes no especializado mercado da indústria de papel – não seu oposto (a barbárie), mas a radicalidade da “ética” moderna e do espírito do capitalismo.

A corrosão do caráter

Uma ética, entretanto, “relativista” em que a transgressão é, no máximo, cinzenta – em lugar de evil, bad, conforme a citada tese. Um capitalismo “flexível”, uma variação sobre um velho tema: atacam-se as formas rígidas de burocracia e os males da rotina cega. Pede-se aos trabalhadores que sejam ágeis, estejam abertos a mudanças a curto prazo, assumam riscos continuamente, dependam cada vez menos de leis e procedimentos formais. Nada mais provável que “a corrosão do caráter” como uma das “conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo” (Sennet). Nada mais próximo do que a França de O Corte, em que grandes corporações demitem uma leva de funcionários na substituição de sua forma de produção. Enquanto as centenas de milhares de trabalhadores trocados pela eletrônica vão às ruas desordenada e desesperadamente protestar...

Os altos e especializados funcionários, cujos postos de trabalho também diminui com a forma enxuta do novo empreendedorismo, estes racionais e ilustrados burocratas, são coagidos à tarefa da multitarefa! O trabalhador polivalente, versátil e disposto ao risco – em que o menor dos riscos na manutenção de certo estilo de vida, afinal, é assassinar o próximo candidato à sua vaga...

* ver MODESTO, Ana Lúcia. Imagens do Mal - A ética no cinema americano contemporâneo. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2004.

segunda-feira, 2 de março de 2009

Para não fugir do clichê


O outro lado do mesmo

Ninguém precisa se contentar com a Índia do horário nobre. E já faz tempo que a tela abdicou da função de espelho da realidade. Já foi a época também em que realidade se dizia no singular. E categorizar as tais “realidades imagéticas”, de Bollywood ou de Hollywood, virou um exercício pouco original. Mas já que originalidade também deixou de ser a premissa, minha como do cinema em geral...

Os modos de vida se encontram e se confrontam, fazendo oscilar, na estória e na história, nuances desses mundos – os mundos subterrâneos àquelas indústrias cinematográficas, da ex Mumbai de Jamal Malik de um lado, de Trainspotting e Tio Sam de outro. “Indústria cinematográfica”, aliás, é um termo fecundo para pensarmos “Quem quer ser um milionário?” (Slumdog Millionaire, EUA/Inglaterra, 2008).

A vida do jovem Malik é a vida de Mumbai, futura Bombaim. Vidas, do menino e da cidade, que se misturam e que são contadas pelas luzes e câmeras que nos obrigam a falar de indústria cultural, porque é disso que se trata o “show do milhão” indiano e sua capacidade de impregnar cada percurso individual de maneira massiva. Mas dá gosto de ver a subversão que Malik faz do império dos meios de comunicação e das finalidades capitalistas, que tendem a solapar as finalidades humanas.


Aquele menino que cresce nas favelas indianas dá o tom do mundo desfocado – da pobreza, do preconceito, da violência diária, dos sentimentos de ódio quanto à diferença, dos fanatismos religiosos – e lança luz sobre a Índia que os turistas não pagam pra ver, mas que me faz forçosa e brasileiramente reconhecer os traços de nossa “Era uma vez” diária – ainda que insistam a compará-lo com(para desgosto de Boyle), e apenas com (por sorte de Boyle), “Cidade de Deus”.

Cada surra dada pelos policiais/torturadores de Malik são devidamente anestesiadas por uma nova imagem da TV, o entorpecente mais bem-sucedido que se poderia inventar. A trajetória de perdas e dores sob os olhos de uma criança sem possibilidades de educação e sucesso profissional, contada através do programa de perguntas e respostas – mecanismo único de produção de um vestígio de “justiça social”, esta mercadoria tanto quanto todos os outros valores e ideais da vida moderna e sua vida ilusória.

Experiência do choque, nossa perda da capacidade de narrar nossas próprias experiência, assim como a própria impossibilidade de uma “experiência autêntica”, que o investigador do cinema e de todas as formas de reprodução técnica, Walter Benjamin, vislumbrou na vida do homem do século XIX, mas também do XX, e podemos dizer, agora do XXI. E como nos lembra Maria João Cantinho, “a experiência do choque nasce e desenvolve-se, par a par com a consciência do declínio da aura [...], declínio que faz nascer um mundo ilusioriamente transfigurado, permitam-nos a expressão, “fantasmagorizado”, mediante a necessidade de tornar suportável a história arruinada, num mundo marcado pelo fétiche da mercadoria”. Fantasmagoria que se faz em uma transfiguração falseadora, atenuante de um olhar mais atento sobre as mazelas da vida cotidiana, e nos faz ver apenas o que queremos olhar.

Então, se deixamos de pensar na penúria de Malik, ficamos com a missão apenas de responder, assim como seus torturadores, como a criança sem instrução foi capaz de tantos acertos naquele jogo midiático. Mas, se despertamos, como quer Benjamin, da “sonolência coletiva” do choque e nos investimos de um olhar profundamente inquieto, gélido e barroco do flâneur, e da rememoração poética e melancólica do alegorista, a questão principal pode ser outra. Pode ser, por exemplo, como a menor das preocupações de Malik, este herdeiro direto da era pós-aurática, ainda que do outro lado do mundo, poderia ser com a cifra milionária da sua premiação. A redenção é um clichê, mas não deixa de ser boa: o dinheiro, o meio por excelência que se tornou progressivamente o fim último de todas as buscas, num tempo em que, como esbocei, as finalidades últimas de valores e ideais propriamente humanos foram solapados pela fetichização capitalista, volta a ser meio em “Quem quer ser um milionário?”.

É mais ou menos isso que a mistura de Bolly com Holly mostrou: como fazer dos meios ilusórios e massificadores instrumentos dos anseios individuais, ao ponto de se tornarem , ao fim, também um despertar coletivo, de uma sociedade de consumidores, não só de mercadorias, mas também de sonhos como o de Malik, a busca de sua libertação – que a fórmula dos mitos ensinou, funciona com o amor romântico, mas que é bom lembrar que não apenas com ele, mas com tudo o mais que é humano.